sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Plaft

Eu não soube conversar.
Então eu evitei.
Os meus pés tremiam.
Eu olhei para baixo e era tudo tão bonito. Elas são tão pequenas.
Eu não posso ouvir mais nada, perdi meu tímpano nas escadas mas eu sinto tudo vibrar daqui de cima e então eu sei, nada está quieto.
Os edifícios de meus adornos são altos e o ar rarefeito tem cheiro de mofo à milanesa.
Ainda pulo daqui e caio alí. E quando eu estiver no chão, descanso as minhas pernas.
Tudo está como estava, as coisas estão lá, sou eu que estou aqui. Não posso descrevê-las. Elas estão lá e sou eu quem está aqui.
De qualquer maneira, melhor ter certeza.
Erguendo os pulsos num movimento brusco e os admirando na velocidade dos segundos. Ela vê que ali estão os dois marcos de sua existência, os dois pequenos marcos paralelos e idênticos em seu pulso a convidam para o tango dos sentidos, ela se desgasta e se inunda para tirar de seu bolso um dos olhos que lhe faltavam. Sem as mãos no bolso, o céu se destaca. Agora com dois olhos ela vê que o cheiro de mofo ali se propagava.
Aqui estão, no mesmo lugar de ontem e de amanhã.
Quer dizer que eu estou aqui agora.
Tenho que decidir se me cubro de náuseas.
Os pés se soltaram e o corpo se inclinou.
Como que numa ilusão de geometria tudo ali parecia quieto.
Ela estava quieta, esperando pela cocaína do chão e pela paralisia da existência.
O líquido vermelho se alojava em todo o seu tronco, parecendo gritar que agora, ele a possuía.
Já não se reconhece, ela está entorpecida pelo chão e flutuando sobre o a indigestão dos que a viram cair.
Ali, a sua face é a de quem gostaria de se levantar, mas o líquido vermelho parece possuir um fluxo de força que a mantém.
Ela não escuta, ela não escolhe.
A multidão de mortos ao seu redor com bolsas e belos trajes a julgam imbecíl enquanto ligam para as luzes e sons brilhantes.
O vermelho do carro parece ter sido proposital.
Como um casamento de tons.
Todos usufruiem da lástima para exaltar-se.
O corpo dela, enlatado.
Todos mortos.
Derramam falsas feições.
Hoje ela esteve no chão, assim como ela sempre tinha estado.
Não havia cheiro de mofo algum. Tudo dissolvera.
Mas o silêncio dela, não tem dias, não tem tempo.
Se ela pudesse ver o próprio rosto agora, freneticamente o limparia.
Mas quando ela o via, mal escovava os dentes.

Chão frio

Antes eu queria sair.
Correr para outro lugar.
Ter aonde me deixar cair e depois voltar para a casa, pronta para a imitação da minha rotina.
A cozinha está cheia de coisas minhas.
Eu só queria morrer um pouco mais longe daqui.
Estou sempre morrendo.
Um dia, eu morro pra valer.
Não quero que as pessoas na locadora continuem me vendo arrastar os chinelos.
Seria egoísmo deixá-los para trás?. Não só as pessoas da locadora. Seria?
Seria mais egóismo eu ficar por eles?
Eu devo ir.
Eu tenho jogado fora coisas que são importantes para mim.
Tenho jogado fora as minhas cartas, os meus contos, tenho jogado fora.
Figuras, carimbos, cartões, meias, tudo, tudo.
Olho pela janela e vejo tudo o que eu joguei através dela, na rua, no escuro. E então por alguns segundos eu não sei se estou aqui ou lá.
Sem as meias eu fiquei andando descalça e com os pés tão frios, que eu comecei a reclamar.
Um miojo, um banho quente.
Perdi minhas unhas na tentativa frustrada de escrever e escrever ontem a noite.
Escreverei até os meus dedos sangrarem. Minha única dádiva confiável.
Aqui, agora, tudo momentâneo no meu lugar.
Mas antes eu queria sair.
Correr para algum lugar bem longe daqui.
Onde eu não saiba o nome das pessoas e nem dos seus cachorros.
Um lugar onde eu me sinta a vontade para me livrar de mim.

Efeitos secundários

Após o homicídio o assassino volta para o conforto de sua casa, vai ao banheiro aonde lava o rosto, direciona os olhos para o espelho e diz para si mesmo: "tive de fazer, eu não tive escolha".
A verdade é que se ele não tivesse dilacerado os pulsos finos dela, se ele não tivesse feito sexo como um ex-presidiário cheio de fome, se ele tivesse apenas reparado no traseiro dela naquela noite e ido para a casa sem mais consequências, ele também se sentira mal.
Visto isso, deixar o sangue escorrer e deixar o traseiro livre caminhar, terminaria de maneira previsível.
Me senti assim.
Eu me sinto assim.
Com o sentimento de que não importa o que eu faça, os efeitos secundários me serão os mesmos.
E como se nada me bastasse, eu sou indiferente.
Porque se render ao acaso da tortura, é tão fraco.
Refletir sobre o que não se sabe. Não se sabe.
Ser indiferente está fora de controle, mas o que me enlouquece é pensar em milhões de hipóteses a fio para tal sentimento sem pudor que me fode o peito e não chegar a nenhuma conclusão convincente. Ou seja, eu perco tempo. Perco tempo sofrendo com algo que irá passar e voltar, e passar e voltar, e passar e voltar, sem mais e nem menos, com enormes feitos e transtornos que a olho nu se parecessem muito com uma noite mal dormida.
Queria me sentir um pouco mais lúcida de mim mesma. Porque no momento em que eu me canso de fugir de forma saudável, eu percebo que saudável ou não, continua sendo uma fuga. Me deixe intorpecida.
Apesar dos meus mais profundos pesares, eu tenho a infelicidade de ser feliz de forma casual.
Minha vida medíocre me soa mesquinha.
Agora eu estou semi-morta, semi-fria e totalmente indiferente.
Eu preciso de algo.
De algo.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Sonífero

E se eu não soubesse escrever?
E se eu abrisse os olhos e não me saíssem letras?
Bastaria tudo o que eu tenho hoje para me confortar do desprezo daqueles que o sabiam de forma injusta?
Tudo o que eu preciso é um lápis,um papel e uma enorme preguiça de concluir as coisas de forma realista.
Eu nunca sei qual é o fim.
O fim é quando eu cubro um espaço legal e canso de mentir.
Quanto mede um espaço legal se eu nunca parei de mentir?

sábado, 11 de abril de 2009

Borboleta

Eu queria acordar sonolenta e no momento em que colocasse os pés no chão frio para caminhar até o banheiro e pentear os longos cabelos percebesse que me haviam nascido asas.Então eu me olharia no reflexo do vidro e imaginaria se aquilo era um presente de alguém que após notar minha existência tinha se sentido culpado.
Mas quando eu acordo sonolenta eu apenas visualizo uma cena estática que nunca acontecera.Naquele momento eu esqueço o nome do meu cachorro e a cor do meu pijama.
Não sabendo quem eu sou, continuo observando a cena estática e começo a ouvir sons dos mais derivados sinos.
Os ventos parecem avassaladores e meu cabelo me priva da visão,eu o coloco atrás da orelha mas ele teima em banhar minha límpida e confusa face.
Envolvida pelos ventos e pelos sinos eu começo a girar,girar e girar.Logo depois, os lençóis de minha cama me acompanham neste ritmo quase que em nenhuma velocidade,eu me viro e viro e eles parecem não se mover,mas depois de algumas mais voltas eu percebo que eles estão comigo nesta dança interminável.
Meu estômago me incomoda e eu já me sinto tonta,quando perco as esperanças e me rendo às voltas involuntárias causadas pelo extremo vento em meu quarto eu percebo que já não sinto o frio do chão.E então eu estou voando.
A luz é o símbolo da complexidade de mim mesma e a minha sede para alcançá-la é estupenda,eu tento e tento mas ela está tão longe.
Eu canso.
Anseio por um líquido doce que me lembre do gosto amargo das palavras que jamais direi novamente,porque hoje eu sou feliz.Eu sou feliz quando faço as minhas voltas em círculos pelo quarto enquanto alcanço a luz suprema e sou feliz quando minha sede pelo mais doce líquido de mim toma conta.
Já não sei se estou lúcida.
Tudo me parece tão confortável e seguro.
Os dias passam e os meus sentimentos se desfazem,eu já não acredito na felicidade e a luz nunca me foi tão fraca e medíocre como hoje.Me encho do mais puro ódio e passo a desgostar de minha cena estática antes nostálgica.
Caio sobre a mesa.
Meus pulsos sangram mas não me lembro de os ter ferido.
E então eu choro.
Me dou conta que estou fraca,a minha cena estática se escuresse,a luz está tão apagada quanto minhas coloridas asas e os sons dos sinos se perderam no abismo que surgia diante de mim.O abismo que eu havia sentido por toda a vida naquele exato momento se materializara.
Tudo perde o sentido e o que antes era som agora já não é nem ruído.
Eu luto,acreditando que o vácuo de mim mesma acredite nas mentiras prévias de minhas preces e me deixe agonizar em paz.
Nada acontece.
Me entrego à mim mesma como quem entrega um copo d'água para a vizinha gorda dos dentes podres.
Caio sobre a cama e abro os olhos devagar.
Devagar,devagar e agora rápido!
Eu era uma borboleta.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Bar 307


Era isso,cheio de névoa.
Névoa na minha cama.
Cama vazia e transbordando de mim.
De mim eu corri para você.
Você ali sorrindo no meio da música.
Música enjoativa para caralho.
Caralho,o que foi que eu bebi ontem?
Ontem passou depressa com sua mão na minha.
Minha rotina alterada agora se acostuma.
Acostuma?Eu nem sei o que eu te disse.
Disse algo nojento e repugnante,acordei só.
Só mais uma vez eu vou aquele mesmo bar.
Bar 307.
307 tipos diferentes de bebida.
Bebida que eu nem vejo descer,lá vem.
Lá vem ele,o cara tatuado e burro.
Burro pra ir pra casa comigo.
Comigo nos seus braços,bêbada.
Bêbada e não muito exigente,querendo um tempo com alguém.
Alguém que irá vazar na madrugada.
Madrugada que demora a chegar quando se tem alguém em cima de você.
Você não ficou emputecido pelo o que eu te disse e sim pelo o que eu não disse,é isso.
Isso que eu sempre faço e sempre esqueço,droga.
Droga,é isso ou era isso?Ele pode estar com uma vadiazinha agora.
Agora é tarde,era isso.
Era isso,cheio de névoa.
Névoa na minha cama.
Cama vazia e transbordando de mim.
De mim eu corri para você.
Você ali sorrindo no meio da música.
Música enjoativa para caralho.
Caralho,o que foi que eu bebi ontem?
Ontem passou depressa com sua mão na minha.
Minha rotina alterada agora se acostuma.
Acostuma?Eu nem sei o que eu te disse.
Disse algo nojento e repugnante,acordei só.
Só mais uma vez eu vou aquele mesmo bar.
Bar 307.

sábado, 4 de abril de 2009

Mustache

Hoje amanheceu,como sempre amanhece e não havia nenhum recado na minha secretária eletrônica.Meu nome é Ana e eu saí de casa, fui morar no primeiro apê que consigui encontrar,foi difícil de achar o mais nojento,até parecia uma competição.Às vezes eu não quero tomar banho no meu banheiro e nem me deitar na minha cama.
Os antigos moradores saíram sem retirar muitas coisas,havia algumas roupas no armário e os quadros não foram removidos.
Algumas roupas eu usei e gostei,nos perfumes eu ainda não mexi e os quadros continuam em seus devidos lugares.
Na cozinha havia um quadro removido,eu só fui perceber mais tarde.Então eu tirei de minha mala uma foto de minha irmã,coloquei uma moldura que pertencia a uma antiga foto,foi a primeira foto que tirei com a minha polaroid.Como tudo na minha vida,ela acabou desaparecendo.Minha mãe deve ter jogado no lixo.
Por um tempo eu fiquei estática observando a imagem que representava para mim o momento antes do meu despertar.
Ficou tão estranho a foto de minha irmã ao lado da geladeira.
Organizei as gavetas,mas eu estava distraída,não ficou organizado.
Fui até a sala e a bosta do meu cachorro havia destroçado o que parecia ser uma conta de luz,mas como se eu acabei de me mudar?Durante o dia eu mantenho as janelas abertas porque o vento daqui jamais pára e durante a noite eu durmo.Que porra é essa de conta de luz?
Droga,escreveram o meu nome errado.
Estou disposta a pagar o cara do mustache estranho para lavar o meu carro,eu preciso dele para voltar para a casa do meu ex-namorado e tirar do desgraçado o que ainda resta de minha TV,se o carro estiver sujo ele vai acabar pensando que estou morando num apartamento nojento e rirá na minha cara.Ele nunca foi falso,rirá na minha cara,com todo o prazer.Eu moro num apartamento nojento,mas isso fica entre mim e o apartamento.
Talvez o cara do mustache fuja com meu carro...
No outro dia eu levei o carro até a oficina.Quando eu estava procurando por um apê eu passei em frente e vi o cara do mustache segurando uma mangueira verde,mas não saía água.
Uma semana depois eu fui buscar e meu carro continuava uma banheira,mas uma banheira limpa.
Eu não tinha dinheiro,eu não tenho dinheiro e ainda não sei como terei.
Assinei um cheque pré-datado e entrei no carro,com todo o prazer quando o cara do mustache se aproximou de mim.
-Meu nome é Marco Gregatti.
-Ahn..e..?
-Você poderia passar isso aqui,por favor?Disse ele me entregando um corretivo.Eu havia escrito o nome dele errado.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Carolina e Marcelo


Carolina morava com Marcelo por tipo três meses,Marcelo mora com Carolina desde os treze anos.
Entediada Carolina sai do sofá e acende o cigarro no fogão,enquanto anda deixa um rastro de cinzas pela casa.Se encosta no armário e observa o rastro, indiferentemente.Carolina já não sabe se as cinzas são deste cigarro ou do próximo.
De manhã,ela se levanta e prepara o café.
De manhã,Marcelo se levanta e toma o café com a sensação de estar tomando o café de outra pessoa.
Marcelo é fotógrafo e trabalha numa confeitaria.Depois de alguns anos de cegueira nada melhor do que se foder um pouco com a realidade de um apartamento pequeno,roupas mal lavadas,atitudes mesquinhas e trepadas regulares.
Carolina não consegue acreditar que se mudou para o fim do mundo com alguém que mal conhecia.Marcelo não quer acreditar que esperou décadas para beijar os lábios e tocar na mulher que hoje caga na sua frente.
Eles não sabem como isso aconteceu e também não sabem aonde está o controle remoto.
Juntam as economias todos os meses e todos os meses disputam pelo lançamento na locadora.
Marcelo volta fodido para a casa,depois de um dia tardio de trabalho,Carolina muito puta o ofende com frases que vira num filme do mês passado,um filme de ação idiota que Marcelo escolheu.Mesmo revoltada e rodeada de palavrões que ela mesma disse,ela se levanta,prepara um chá,abre o armário com cuidado porque aquela porra tá caindo aos pedaços,tira um doritos,entrega para ele que estava todo bixado no sofá e se senta ao lado.Sem cessar os palavrões ela o abraça e desliza os dedos nos cabelos dele.Ele,decepcionado com o viado do chefe,delicadamente coloca as mãos atrás das costas dela.
Se xingam,abraçados.
Carolina lhe estende a mão,o leva para o quarto aonde tira-lhe a camisa,o deita na cama já desarrumada e o cobre com a coberta cheia de migalhas de outros muitos doritos,pães..Volta e organiza a sala,não porque estava realmente precisando de uma ordem e sim porque as coisas que ali estavam eram apenas vestígios.
Volta,se atira na cama e ali fica.
Marcelo se vira com cuidado e com os olhos pesados,coloca as mãos no ombro de Carolina.
Carolina segura-lhe a mão e a coloca em sua cintura.
A noite cai.
Entediada Carolina sai do sofá e acende o cigarro no fogão,enquanto anda deixa um rastro de cinzas pela casa.Se encosta no armário e observa o rastro, indiferentemente.Carolina já não sabe se as cinzas são deste cigarro ou do próximo.
De manhã,ela se levanta e prepara o café.
De manhã,Marcelo se levanta e toma o café com a sensação de estar tomando o café de outra pessoa....

Biscoito com requeijão

No meu antigo bairro,todos os dias de manhã o meu vizinho saía para andar de bicicleta e todos os dias durante a noite ele se sentava no telhado para olhar as estrelas com um binóculo vagabundo,isso soa poético mas quando ele fazia parecia mais com depilar as axilas,cotidiano mas diferente ainda assim.
Ele era um rapaz,do tipo que usa boné e bermudas,ele sabia conversar e por mais que a conversa fosse longa ele jamais tocava no assunto sobre o pai dele ser policial e o fato de ter armas de verdade em casa.
Um dia minha mãe estava na calçada conversando com a mãe dele,eu não me lembro se era tarde ou manhã,mas eu tenho certeza que não era noite.E então ele me perguntou se eu gostaria de ver a luneta dele,é claro que eu disse que sim,eu nunca tinha visto uma antes.Ele me respondeu com muita ternura que em qualquer outro momento ele me mostrava,ele era sempre cheio de ternura,sorridente e um pouco malicioso.
Mas isso nunca aconteceu.
Uma semana,duas ou até mesmo três depois,não me lembro,eu acordei e minha mãe me disse que achou estranho ver uma ambulância em frente a casa dele,de primeira eu não estranhei,na verdade achei muito normal,a mãe dele sempre me pareceu um tanto doente,era fraquinha e com enormes olheiras.Algumas horas depois uma outra vizinha disse para a minha mãe que era ele quem estava internado,aí sim eu achei estranho.Achei estranho o fato de ele ter ido parar no hospital,aquele lugar branco com cheiro de álcool,ah...eu conheço muito bem o hospital,mas o que eu achei mais bizarro foi a puta da vizinha que nem se quer diz "bom dia" aparecer em minha casa,tomar um café com minha mãe apenas com o intuito de fofocar,a primeira vez que eu vi essa vagabunda rindo foi no momento em que ela estava com a boca toda suja e melecada de biscoito com requeijão.Hoje em dia ninguém mais vê ela,mas ela ainda mora na mesma casa,minha mãe me disse que ela enlouqueceu depois que a filha dela jogou um vaso bem na cabeça da desgraçada.Eu perdi essa cena,eu estava na escola,mas me disseram que a mulher subiu na sacada e atirou de lá de cima e tudo o que eu consigui pensar foi que ela com certeza tem uma boa mira.
Eu não tinha idade para ir ao hospital visitá-lo e minha mãe não era tão próxima da família,então eu fiquei sem notícias dele por um tempo,até que não se via mais a viatura do pai dele na garagem,os cabelos e olheiras enormes da mãe dele e nem o cachorro irritante.
Não sei como,mas eu acabei descobrindo que ele havia falecido,ele havia engasgado com alguma coisa que eu não me lembro o que era e então ele se foi e a luneta também,meus sonhos de ver as estrelas se acabaram.
A mãe dele me contou que ele estava no telhado quando tudo aconteceu,foi a primeira vez que ela realmente estava falando comigo e minha mãe nem se quer estava por perto.
Quando você morre,você morre.Mas eu imagino que a última coisa que ele possa ter sentido antes de lhe faltar o ar é o sentimento de estar completo,olhando para as estrelas eu não sinto que preciso de mais alguma coisa.
Mas mesmo assim,sempre que eu ouço o nome dele eu acabo me lembrando do maldito biscoito com requeijão.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ontem

Marcela sentada na mesa olhando para a TV no balcão da cozinha fica imaginando estar assistindo um filme sobre tudo o que esqueceu. A TV não funciona e nem nunca funcionou, ela não pensa em comprar outra ou simplesmente atirá-la ao lixo .Mesmo sem conhecer o seu passado e sabendo que irá esquecer o presente,de alguma forma imagina que o passado sempre é mais fácil,afinal,já passou.

Numa padaria qualquer há mesinhas, ou pelos menos havia. Todas as tardes Marcela tomava o seu café com muito açúcar muito bem confortada entre as cadeiras de madeira. A maioria das pessoas tomam café no momento em que despertam ,por isso Marcela estava sempre sozinha durante as longas tardes de verão e curtas tardes de inverno.

Sempre organizada e analítica, ela escolhia a mais perfeita mesa para se sentar.

- Se sentará aqui hoje?

- Sim. Respondia muito sorridente, mas prevendo que esta seria a pergunta.

- O mesmo de sempre?

- Com muito açúcar.

- É para já. Mas saiba que o açúcar é doce e faz muito mal.

- Você não fala do café,você fala de amor.

O padeiro se retirou.

Quente,o café estava fervendo,ela o segurou com o mais possível cuidado e o colocou na mesa,preocupada com o pouco açúcar que o padeiro lhe dera ,começou a contar rapidamente quantos bloquinhos ele havia posto e em momento algum notou que havia mais alguém na mesa ao lado.

O açúcar não era o suficiente mas resolveu não incomodar o padeiro,ele já estava velho demais e provavelmente gágá,pensou ela.

Com o canto dos olhos notou alguém e também com o canto dos olhos notou que este alguém a estava olhando fixamente por um tempo e sem o canto dos olhos ela também olhou fixamente para o homem cabeludo e barbudo tomando uma soda.

Terminou o café,levantou-se e bateu-se em retirada.

Isso aconteceu ontem,desde então tudo é ontem.Este ontem aconteceu há 20 anos atrás e ainda assim é tudo o que Marcela consegue lembrar.

Dormir e se levantar todos os dias com a mesma lembrança de um ontem qualquer e revisá-lo desesperadamente para ter a certeza de não ter esquecido alguma insignificante passagem deve ser desgastante.

Ela esqueceu do modo como enrolava os próprios cigarros e que no canto do cômodo havia uma lareira.Todos os dias Marcela se sentava em frente a TV sentindo que faltava-lhe algo entre os dedos e tudo o que ela conseguia pensar é que estava tão frio.

terça-feira, 31 de março de 2009

A Virgem

Abri a porta,entrei e pensei que talvez fosse tarde,mas eu não tinha conseguido sair mais cedo do trabalho.Caminhei em direção à cozinha e estava lá depositado o bule,isso significa que ele se sentiu entediado durante a tarde e se ele estava entediado era porque ele não tinha fodido a vizinha do 32.

Desabotoei a calça e a atirei ao léu no corredor.Exausta eu desencostei a porta e lá estava ele deitado na cama fingido estar interessado em alguma merda naquele jornal da TV.

Eu estava caindo de cansaço e eu precisava de uma boa transa,o meu medo era que ele não estivesse afim ,só há 3 motivos para que ele não transe:quando ele fode a vizinha durante a tarde,o que não é o caso de hoje,quando eu chego tarde demais e ele já está no sétimo sono ou nas quintas-feiras..ele não transa de quinta,ele tem que descansar,sexta é o dia da vizinha do 37.

Me aproximei dele,beijei o seu pescoço,o seu ombro e o canto dos lábios,ele não demonstrou reação alguma.

- Boa noite.Eu disse muito puta.

- Boa noite.Ele respondeu amoroso.

Me levantei bruscamente,saí com a caneca de chá em mãos,no corredor eu pisoteei a calça e sem querer olhei o calendário.Era quinta-feira..aquele bicha.

Só me restava um banho e a água estava gelada,olhei para o shampoo e me lembrei que não havia pagado a cretina do trabalho que me força a comprar shampoos,cremes e qualquer outra porra naqueles catálogos infernais.

Como será que ele transa com a vizinha do 32?

Ela é assim...tão frígida.Deve ser no mínimo estranho,cadavérico.

Ele pode comer ela quantas vezes quiser,ela pode foder com ele quantas vezes ela quiser,desde que ela não olhe para ele da mesma maneira como eu olho.Não sinto ciúmes quando se trata de sexo,afinal,há coisa mais mecânica do que sexo?Eu não devo sentir ciúmes de movimentos repetitivos e sussurros de prazer,mas se ela o olhar da maneira como eu faço,eu mato a vadia.

De repente a água se torna quente.

Sabe,eu nunca transei com qualquer outra pessoa desde que ele se mudou para cá,não sinto necessidade alguma,às vezes eu me sinto deprimida e o pintor da praça ao lado é realmente atraente,mas não...eu não transaria com ele,para mim não é tão mecânico quanto para alguns.Eu acho que sempre serei uma virgem que se desvirginará para sempre sem se perturbar com isso.

Ai que foda de pentear esse cabelo,eu deveria ter comprado um creme para pentear daquela cretina e não mais um shampoo de cereja inútil.

Abri a gaveta e percebi que eu não tenho a droga de uma camisola ,talvez se eu vestisse alguma ele transaria comigo agora,mas tudo o que eu tenho são blusões ridículos.

Coloquei um,acendi um cigarro,peguei a caneca de chá depositada na cozinha e fui até a varanda.As luzes das casas ao lado estão todas apagadas,mas do outro lado estão todas acesas,daí eu concluí que de um lado estão as pessoas que transam e as que não transam.No momento eu faço parte das que não transam.Droga,o chá ta gelado pra caralho.Virei num gole só.

Eu vou morrer hoje.

Todos os dias eu venho me suicidando com cigarros ,bebidas e sexo,talvez de hoje eu não passe.

Voltei para a cama obcecada pela morte ,olhei para os olhos dele que estavam tão negros,olhei para a sua pele tão morena e para o seu cabelo todo encaracolado ..

- Eu vou morrer.

- Um dia todos nós iremos.

- Mas eu morrerei hoje.

- Você não morrerá hoje Paula ,parece criança..bate nessa boca.

-Por que você não transa comigo?

- Eu to cansado,porra.

- Você ao menos gosta de mim?

- Claro,eu te amo

E então ele riu.

Me virei para o outro lado da cama e dormi virgem naquela noite.