quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ontem

Marcela sentada na mesa olhando para a TV no balcão da cozinha fica imaginando estar assistindo um filme sobre tudo o que esqueceu. A TV não funciona e nem nunca funcionou, ela não pensa em comprar outra ou simplesmente atirá-la ao lixo .Mesmo sem conhecer o seu passado e sabendo que irá esquecer o presente,de alguma forma imagina que o passado sempre é mais fácil,afinal,já passou.

Numa padaria qualquer há mesinhas, ou pelos menos havia. Todas as tardes Marcela tomava o seu café com muito açúcar muito bem confortada entre as cadeiras de madeira. A maioria das pessoas tomam café no momento em que despertam ,por isso Marcela estava sempre sozinha durante as longas tardes de verão e curtas tardes de inverno.

Sempre organizada e analítica, ela escolhia a mais perfeita mesa para se sentar.

- Se sentará aqui hoje?

- Sim. Respondia muito sorridente, mas prevendo que esta seria a pergunta.

- O mesmo de sempre?

- Com muito açúcar.

- É para já. Mas saiba que o açúcar é doce e faz muito mal.

- Você não fala do café,você fala de amor.

O padeiro se retirou.

Quente,o café estava fervendo,ela o segurou com o mais possível cuidado e o colocou na mesa,preocupada com o pouco açúcar que o padeiro lhe dera ,começou a contar rapidamente quantos bloquinhos ele havia posto e em momento algum notou que havia mais alguém na mesa ao lado.

O açúcar não era o suficiente mas resolveu não incomodar o padeiro,ele já estava velho demais e provavelmente gágá,pensou ela.

Com o canto dos olhos notou alguém e também com o canto dos olhos notou que este alguém a estava olhando fixamente por um tempo e sem o canto dos olhos ela também olhou fixamente para o homem cabeludo e barbudo tomando uma soda.

Terminou o café,levantou-se e bateu-se em retirada.

Isso aconteceu ontem,desde então tudo é ontem.Este ontem aconteceu há 20 anos atrás e ainda assim é tudo o que Marcela consegue lembrar.

Dormir e se levantar todos os dias com a mesma lembrança de um ontem qualquer e revisá-lo desesperadamente para ter a certeza de não ter esquecido alguma insignificante passagem deve ser desgastante.

Ela esqueceu do modo como enrolava os próprios cigarros e que no canto do cômodo havia uma lareira.Todos os dias Marcela se sentava em frente a TV sentindo que faltava-lhe algo entre os dedos e tudo o que ela conseguia pensar é que estava tão frio.

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