quinta-feira, 2 de abril de 2009

Biscoito com requeijão

No meu antigo bairro,todos os dias de manhã o meu vizinho saía para andar de bicicleta e todos os dias durante a noite ele se sentava no telhado para olhar as estrelas com um binóculo vagabundo,isso soa poético mas quando ele fazia parecia mais com depilar as axilas,cotidiano mas diferente ainda assim.
Ele era um rapaz,do tipo que usa boné e bermudas,ele sabia conversar e por mais que a conversa fosse longa ele jamais tocava no assunto sobre o pai dele ser policial e o fato de ter armas de verdade em casa.
Um dia minha mãe estava na calçada conversando com a mãe dele,eu não me lembro se era tarde ou manhã,mas eu tenho certeza que não era noite.E então ele me perguntou se eu gostaria de ver a luneta dele,é claro que eu disse que sim,eu nunca tinha visto uma antes.Ele me respondeu com muita ternura que em qualquer outro momento ele me mostrava,ele era sempre cheio de ternura,sorridente e um pouco malicioso.
Mas isso nunca aconteceu.
Uma semana,duas ou até mesmo três depois,não me lembro,eu acordei e minha mãe me disse que achou estranho ver uma ambulância em frente a casa dele,de primeira eu não estranhei,na verdade achei muito normal,a mãe dele sempre me pareceu um tanto doente,era fraquinha e com enormes olheiras.Algumas horas depois uma outra vizinha disse para a minha mãe que era ele quem estava internado,aí sim eu achei estranho.Achei estranho o fato de ele ter ido parar no hospital,aquele lugar branco com cheiro de álcool,ah...eu conheço muito bem o hospital,mas o que eu achei mais bizarro foi a puta da vizinha que nem se quer diz "bom dia" aparecer em minha casa,tomar um café com minha mãe apenas com o intuito de fofocar,a primeira vez que eu vi essa vagabunda rindo foi no momento em que ela estava com a boca toda suja e melecada de biscoito com requeijão.Hoje em dia ninguém mais vê ela,mas ela ainda mora na mesma casa,minha mãe me disse que ela enlouqueceu depois que a filha dela jogou um vaso bem na cabeça da desgraçada.Eu perdi essa cena,eu estava na escola,mas me disseram que a mulher subiu na sacada e atirou de lá de cima e tudo o que eu consigui pensar foi que ela com certeza tem uma boa mira.
Eu não tinha idade para ir ao hospital visitá-lo e minha mãe não era tão próxima da família,então eu fiquei sem notícias dele por um tempo,até que não se via mais a viatura do pai dele na garagem,os cabelos e olheiras enormes da mãe dele e nem o cachorro irritante.
Não sei como,mas eu acabei descobrindo que ele havia falecido,ele havia engasgado com alguma coisa que eu não me lembro o que era e então ele se foi e a luneta também,meus sonhos de ver as estrelas se acabaram.
A mãe dele me contou que ele estava no telhado quando tudo aconteceu,foi a primeira vez que ela realmente estava falando comigo e minha mãe nem se quer estava por perto.
Quando você morre,você morre.Mas eu imagino que a última coisa que ele possa ter sentido antes de lhe faltar o ar é o sentimento de estar completo,olhando para as estrelas eu não sinto que preciso de mais alguma coisa.
Mas mesmo assim,sempre que eu ouço o nome dele eu acabo me lembrando do maldito biscoito com requeijão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário