domingo, 27 de maio de 2012


Sempre que algo de bom lhe acontecia, pensava em morrer.
Queria escolher morrer com o coração cheio de ternura. Não via sentido em morrer quando estivesse triste, por que haveria de eternizar aquilo?  São tantas as vezes em que sentiu aquele medo da morte e no fim não era nada daquilo, era apenas ansiedade de caloura da faculdade ou um amorzinho em estado de dúvida.
Mordia forte a cuca que dona Antônia havia feito e se lambuzava com o bolo, exclamava-se toda por dentro imaginando o funeral e as pessoas que mais gostava chorando. Todas as suas pessoas preferidas no mundo todo estariam lá e é claro que haveria chá e bolachas, como odiava ir em velórios aonde além de chorar tudo pra fora ainda tinha que passar fome! Pensava que Seu Rogério fosse ler alguma coisa sobre ela para todos, mas pobrezinho, há tanto que não escreve, a última vez escreveu sobre flores e teve de ler alto para as crianças do bairro, pior que sua voz de gente velha num tempo em que se vai ficando rouco e sofrido foi a cara de toda aquela gente pequena não sabendo se olhavam para aquele olho fundo que brilhava com ar de choro, como se mil lágrimas estivessem presas ou se olhavam para a professora Luzia, também velha porém feliz com a idade. Ninguém entendia uma palavra se quer que saía daquela boca tão conhecida pela cidade. A partir daí inventaram-se rumores de que ele estava apaixonado e haviam lhe partido o coração, logo travou-se na escrita. E eu aqui, crendo que o amor consertava. Bom, a gente nunca sabe.
Pensava em editar também um filme com a trilha sonora daquele filme que não sabia o nome, seu primo tinha lhe emprestado quando ainda era pequena, mas nunca ficou pra assistir junto. Sentava sozinha no sofá que parecia ainda maior e fazia de tudo uma conclusão. O importante era que aquilo virou memória e tudo é melhor quando se é memória. Lembrava da meia que usava, aquelas meias fraquinhas que te obrigam a cobrir os pés com manta, apesar de ter visto o filme tantas vezes, lembrou-se mais desse dia. Talvez pelo frio que sentiu nos pés. No entanto quando fixava bem os olhos naquela história linda, que era mais linda porque todos diziam ser linda, os momentos mais lindos surgiam e a música triste de fundo se aumentava e ela esquecia do pé gelado e que sua mãe poderia estar ali, ou poderia aparecer ali, ou alguém poderia aparecer ali. Se esquecia e mostrava o que era, deixando-se tomar pelo filme e assimilando palavras novas, copiando gestos, sofrendo com as pessoas do filme. Era sensível essa menina.  Quão constrangedor seria ser assim por fora.
Assim que voltava ao normal, cobria os pés e não, não queria morrer neste momento.
Tirou tantas fotos lindas dos dias em que visitou sua Avó no sítio, fotos nos lugares verdes e usava o chapéu da tia Ana. Poderiam passar tais fotos neste vídeo, ficariam todos surpresos em como ela era linda e que pena ter morrido.
Que difícil, que difícil era tocar o violino. Que missão mais árdua sua mãe lhe havia deixado.
Quando ia para as aulas, professor Victor sempre com roupas claras e cabelos que combinavam com elas, a luz que aqueles fios iam refletindo de alguma forma era tão bonita e parecia tudo tão certo, aceitaria naquele momento qualquer acorde. E quando conseguia imitá-lo mais ou menos, era ela tomada pela felicidade de poder agradá-lo e fazer com que ele acreditasse que era assim mesmo que se ensinava. Nunca quis tocar violino, mamãe havia lhe imposto, digo, sua mãe lhe havia imposto tocá-lo para ser uma boa menina como Vera, de forma que Vera tocava piano e era a filha da melhor amiga de sua mãe. Todos que fossem outros eram sempre melhores e mais dedicados. Não tem problema, assumiu aprender e aprender bem, para que Victor ficasse feliz com seu trabalho. Sangraria os dedos para deixa-lo bem e então ficar bem. Ia para casa satisfeita e não sabia bem porquê.
Poderiam então tocar violino para mim enquanto eu estivesse deitada naquele caixão de flores. Oh Deus! Não, Não haveriam de lhe botar algodão no nariz! Talvez fosse melhor deixar uma pequena carta com algumas exigências pois havia lembrado que Lucas, seu vizinho, era criança pequena, e crianças pequenas não sabem o que é viver e muito menos morrer, logo estaria com a alma tranquila, provavelmente entretido com tanta gente num cômodo só. E não queria isso, queria tristeza e sofrimento. Queria que sofressem por terem perdido moça tão bonita que tocava violino. Portanto, sem crianças no seu funeral.
Já havia tentado encontrar um amor pra vida toda, mas imagina este coitado ao saber que ela havia partido? Que estaria comendo grama pela raiz? Que havia batido as botas? Seria egoísmo amar tanto alguém e depois partir. Ficava triste pensando que seria mais terno se nem tentasse. Havia este garoto que via sempre a caminho da escola, era irmão de Claudia, moça que cuidava de dois bebês gêmeos na cidade ao lado. Era garoto bonito, e um dia indo para a aula de álgebra escolheu amá-lo para sempre. Amou-o tanto que não permitiu que seu coração pudesse amá-lo. Amou pois por ele, não amaria outro nunca mais. Viveria para ele e jamais lhe contaria isso, porque o amava tanto que quis cuidar bem do que sentia. Queria poder morrer sem fazê-lo sofrer e se não o amasse e ele também não soubesse seu nome, tudo estaria como deveria ser.
Nunca foi moça triste mas também nunca soube de muito, pensava em tudo quanto podia e perguntava ainda um pouco mais, mas vivia entre os velhos e sentia que vivia para os outros também. Não sabia em que parte daquela briga com seu pai quando pequena havia esquecido seu amor pelo que ela era. Sempre que muito triste, lembrava dessa briga. Não se lembra bem o que aquele senhor lhe dizia mas sabia que não era bom, havia mentido para ele, não lembra porquê. Tinha quebrado alguma coisa de vidro, os pedaços no chão eram poucos e grandes, dava até pra se notar o que costumava ser aquele objeto agora estraçalhado. Naquele dia deixou de gostar de si mesma e não consegue voltar atrás pra consertar. Papai viaja muito e não tem coragem de saber dele aonde deve melhorar para que possa gostar dela mesma também. Aí vive assim, pelos outros. Vive mais pelos mais velhos, gosta de fazê-los crer que eles ainda são importantes para algo e que suas histórias fazem sentido para alguém. Que conselhos são bem vindos e que tem dúvidas bestas sobre a vida que só eles podem responder.
Em seu velório, todos vão sofrer por tê-la amado tanto e será tão bonito. Terá morrido feliz, num momento desses em que vive escolhendo... pobre moça tão bonita, morta.


De todas as dores, a dor de ser vomitado para fora sem mais e nem menos é a maior. É a maior porque ela não arde e nem dói, apenas vai ferindo conforme você vai explodindo da jaula do corpo. Aquilo que não tem nome ainda crescia.
Como poderia você, com dedos tão pequenos entender que tudo começa por dentro sendo que quando deu-se por si, estava do lado de fora?