Sempre que algo de bom lhe acontecia, pensava em morrer.
Queria escolher morrer com o coração cheio de ternura. Não via sentido em
morrer quando estivesse triste, por que haveria de eternizar aquilo? São tantas as vezes em que sentiu aquele medo
da morte e no fim não era nada daquilo, era apenas ansiedade de caloura da
faculdade ou um amorzinho em estado de dúvida.
Mordia forte a cuca que dona Antônia havia feito e se
lambuzava com o bolo, exclamava-se toda por dentro imaginando o funeral e as
pessoas que mais gostava chorando. Todas as suas pessoas preferidas no mundo
todo estariam lá e é claro que haveria chá e bolachas, como odiava ir em
velórios aonde além de chorar tudo pra fora ainda tinha que passar fome!
Pensava que Seu Rogério fosse ler alguma coisa sobre ela para todos, mas
pobrezinho, há tanto que não escreve, a última vez escreveu sobre flores e teve
de ler alto para as crianças do bairro, pior que sua voz de gente velha num
tempo em que se vai ficando rouco e sofrido foi a cara de toda aquela gente
pequena não sabendo se olhavam para aquele olho fundo que brilhava com ar de
choro, como se mil lágrimas estivessem presas ou se olhavam para a professora
Luzia, também velha porém feliz com a idade. Ninguém entendia uma palavra se
quer que saía daquela boca tão conhecida pela cidade. A partir daí
inventaram-se rumores de que ele estava apaixonado e haviam lhe partido o
coração, logo travou-se na escrita. E eu aqui, crendo que o amor consertava.
Bom, a gente nunca sabe.
Pensava em editar também um filme com a trilha sonora daquele filme que não
sabia o nome, seu primo tinha lhe emprestado quando ainda era pequena, mas
nunca ficou pra assistir junto. Sentava sozinha no sofá que parecia ainda maior
e fazia de tudo uma conclusão. O importante era que aquilo virou memória e tudo
é melhor quando se é memória. Lembrava da meia que usava, aquelas meias
fraquinhas que te obrigam a cobrir os pés com manta, apesar de ter visto o
filme tantas vezes, lembrou-se mais desse dia. Talvez pelo frio que sentiu nos
pés. No entanto quando fixava bem os olhos naquela história linda, que era mais
linda porque todos diziam ser linda, os momentos mais lindos surgiam e a música
triste de fundo se aumentava e ela esquecia do pé gelado e que sua mãe poderia
estar ali, ou poderia aparecer ali, ou alguém poderia aparecer ali. Se esquecia
e mostrava o que era, deixando-se tomar pelo filme e assimilando palavras
novas, copiando gestos, sofrendo com as pessoas do filme. Era sensível essa
menina. Quão constrangedor seria ser
assim por fora.
Assim que voltava ao normal, cobria os pés e não, não queria morrer neste momento.
Tirou tantas fotos lindas dos dias em que visitou sua Avó no sítio, fotos nos
lugares verdes e usava o chapéu da tia Ana. Poderiam passar tais fotos neste
vídeo, ficariam todos surpresos em como ela era linda e que pena ter morrido.
Que difícil, que difícil era tocar o violino. Que missão mais árdua sua mãe lhe
havia deixado.
Quando ia para as aulas, professor Victor sempre com roupas claras e cabelos
que combinavam com elas, a luz que aqueles fios iam refletindo de alguma forma
era tão bonita e parecia tudo tão certo, aceitaria naquele momento qualquer
acorde. E quando conseguia imitá-lo mais ou menos, era ela tomada pela
felicidade de poder agradá-lo e fazer com que ele acreditasse que era assim
mesmo que se ensinava. Nunca quis tocar violino, mamãe havia lhe imposto, digo,
sua mãe lhe havia imposto tocá-lo para ser uma boa menina como Vera, de forma
que Vera tocava piano e era a filha da melhor amiga de sua mãe. Todos que
fossem outros eram sempre melhores e mais dedicados. Não tem problema, assumiu
aprender e aprender bem, para que Victor ficasse feliz com seu trabalho.
Sangraria os dedos para deixa-lo bem e então ficar bem. Ia para casa satisfeita
e não sabia bem porquê.
Poderiam então tocar violino para mim enquanto eu estivesse deitada naquele caixão
de flores. Oh Deus! Não, Não haveriam de lhe botar algodão no nariz! Talvez
fosse melhor deixar uma pequena carta com algumas exigências pois havia lembrado
que Lucas, seu vizinho, era criança pequena, e crianças pequenas não sabem o
que é viver e muito menos morrer, logo estaria com a alma tranquila,
provavelmente entretido com tanta gente num cômodo só. E não queria isso,
queria tristeza e sofrimento. Queria que sofressem por terem perdido moça tão
bonita que tocava violino. Portanto, sem crianças no seu funeral.
Já havia tentado encontrar um amor pra vida toda, mas imagina este coitado ao
saber que ela havia partido? Que estaria comendo grama pela raiz? Que havia
batido as botas? Seria egoísmo amar tanto alguém e depois partir. Ficava triste
pensando que seria mais terno se nem tentasse. Havia este garoto que via sempre
a caminho da escola, era irmão de Claudia, moça que cuidava de dois bebês
gêmeos na cidade ao lado. Era garoto bonito, e um dia indo para a aula de álgebra
escolheu amá-lo para sempre. Amou-o tanto que não permitiu que seu coração
pudesse amá-lo. Amou pois por ele, não amaria outro nunca mais. Viveria para
ele e jamais lhe contaria isso, porque o amava tanto que quis cuidar bem do que
sentia. Queria poder morrer sem fazê-lo sofrer e se não o amasse e ele também
não soubesse seu nome, tudo estaria como deveria ser.
Nunca foi moça triste mas também nunca soube de muito, pensava em tudo quanto
podia e perguntava ainda um pouco mais, mas vivia entre os velhos e sentia que
vivia para os outros também. Não sabia em que parte daquela briga com seu pai
quando pequena havia esquecido seu amor pelo que ela era. Sempre que muito
triste, lembrava dessa briga. Não se lembra bem o que aquele senhor lhe dizia
mas sabia que não era bom, havia mentido para ele, não lembra porquê. Tinha
quebrado alguma coisa de vidro, os pedaços no chão eram poucos e grandes, dava
até pra se notar o que costumava ser aquele objeto agora estraçalhado. Naquele
dia deixou de gostar de si mesma e não consegue voltar atrás pra consertar.
Papai viaja muito e não tem coragem de saber dele aonde deve melhorar para que possa
gostar dela mesma também. Aí vive assim, pelos outros. Vive mais pelos mais
velhos, gosta de fazê-los crer que eles ainda são importantes para algo e que
suas histórias fazem sentido para alguém. Que conselhos são bem vindos e que
tem dúvidas bestas sobre a vida que só eles podem responder.
Em seu velório, todos vão sofrer por tê-la amado tanto e será tão bonito. Terá
morrido feliz, num momento desses em que vive escolhendo... pobre moça tão
bonita, morta.